Os Sete Vales

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(“MINHADJ UL-‘A’BIDÎN”, Método dos servo-adoradores (de Alláh), do imám Abú Hamid al-Ghazzali (1058-1111)

Sabei, irmãos meus, que a adoração (‘ibádat) é o fruto do conhecimento, o benefício da vida e o capital dos virtuosos. É propósito e objetivo dos homens de nobres aspirações terem uma aguda compreensão interna. É seu bem supremo e seu paraíso eterno. “Eu sou vosso Criador”, disse Alláh no Alcorão. “Adorai-me. Tereis vossa recompensa e vossos esforços serão reconhecidos”.

A adoração é então essencial para o homem, porém está bloqueada por dificuldades e problemas. Há obstáculos e armadilhas em seu tortuoso caminho, cheio de assassinos e djinns (gênios), a ajuda é escassa e poucos são os amigos. Este caminho de adoração deve ser perigoso, pois disse o Profeta (saw), “o Paraíso está rodeado de sofrimentos e coberto de tribulações; e o inferno, do gozo fácil e gratuito das paixões”. Pobre ser humano! É fraco, seus compromissos são pesados, os tempos são duros e a vida é curta; porém, a viagem daqui para lá é inevitável e, se esquece de levar as provisões necessárias, seguramente perecerá. Meditai sobre a gravidade da situação e a seriedade de nosso estado. Certamente nossa sorte é penosa, pois muitos são os chamados, porém poucos os escolhidos.

Quando percebi que o caminho da adoração era muito difícil e perigoso, escrevi certos trabalhos, principalmente o Ihya ‘ulum id-din (“Revivificação das ciências da religião”), em que indiquei os meios para se superar as dificuldades, enfrentando valentemente os perigos e percorrendo o caminho com êxito. Porém, algumas pessoas ao verem o sentido externo de certas expressões da minha obra, não entenderam o seu significado e propósito, e não só rechaçaram o livro (durante a vida de al-Ghazzali, o livro foi publicamente queimado pelo qádí-l-qudát – o juiz dos juizes – Abenhamdin, na cidade de Córdoba, na Espanha muçulmana), como ainda o trataram de uma maneira imprópria para um muçulmano. Porém, não me desencorajei, pois eram pessoas que ridicularizariam o Sagrado Alcorão, chamando-o “Histórias dos antigos”. Não me ofendi porque senti pena deles, que não sabiam o que faziam a si mesmos.

Odeio as disputas, mas me senti no dever de fazer algo por eles. Então, por compaixão aos meus irmãos, orei a Alláh para que me iluminasse sobre a questão de outro modo.

Sabei então que, o primeiro passo para que o homem desperte de sua própria inércia e tome a decisão de seguir o caminho, é a graça de Alláh que move a mente a meditar assim. “Sou abençoado com tantos dons, a vida, o poder, a razão, a fala e me acho misteriosamente protegido de muitos males e moléstias. Quem é meu Benfeitor? Quem é meu Salvador?”

Devo ficar-lhe agradecido da maneira apropriada ou os dons me serão tirados e estarei perdido. Estes dons revelam seu propósito como ferramentas nas mãos de um artesão e o mundo me parece um belo quadro que guia meus pensamentos até o pintor.

A fala consigo mesmo o leva ao Vale do Conhecimento, onde a fé implícita no Mensageiro Divino lhe ensina o caminho dizendo-lhe: O Benfeitor é o Ser Único que não tem parceiros. É teu Criador Onipresente, ainda que invisível, cujos Mandamentos devem ser obedecidos tanto interna quanto externamente. Ele ordenou que o bom seja recompensado e o mau castigado. A escolha é sua, pois o único responsável pelas tuas ações é você mesmo. Adquire conhecimento sob a direção de um ‘Alim (erudito, sábio) temeroso de Alláh, com uma convicção sem titubeios. Quando cruza o Vale do Conhecimento, o homem prepara-se para a adoração, porém, sua consciência culpada o recrimina dizendo “Podes golpear a porta do Santuário? Fora com tuas abominações contaminantes!”

O pobre pecador cai no Vale do Arrependimento quando ouve uma voz dizendo “Arrepende-te, arrepende-te, pois teu Senhor perdoa”.

Então se entusiasma e, levantando com alegria segue adiante.

E entra no Vale cheio de tropeços, sendo quatro os principais: o mundo, as pessoas atraentes, o velho inimigo shaitan (satanás) e um ego desmedido. Que tenha quatro antídotos para superar as dificuldades. Que escolha a vida retirada, que evite mesclar-se com toda a classe de pessoas, que combata o antigo inimigo e guarde seus domínios com as rédeas da piedade.

Que se recorde que as quatro contraforças devem enfrentar outras quatro moléstias psicológicas, isto é:

1. Ansioso cuidado sobre o pão de cada dia, como resultado de seu retiro;
2. As dúvidas e ansiedades sobre assuntos particulares que perturbam a paz da mente;
3. As preocupações, privações e indignidades por falta de contato social, pois quando o homem quer servir a Alláh, satanás o ataca aberta e secretamente por todos os lados;
4. Os acontecimentos desagradáveis e sofrimentos inesperados como resultado do destino.

Estes problemas psicológicos levam o pobre adorador (‘abid) ao Vale das Tribulações. E, nesta dificuldade, que o homem proteja-se:

1. Dependendo de Alláh quanto a seu sustento;
2. Invocando Sua ajuda quando se sente desprotegido;
3. Com a paciência (sabr) nos sofrimentos;
4. Pela prazerosa submissão a Sua Vontade.

Ao cruzar este temível Vale das Tribulações, o homem pensa que a situação não será fácil, porém, para sua surpresa, percebe que o serviço não é interessante, que as orações são mecânicas e que a contemplação não é prazerosa. É indolente, melancólico e estúpido.

Assombrado e perplexo, entra no Vale dos Trovões. O relâmpago da esperança o cega e cai tremendo quando ouve o som ensurdecedor do trovão do Temor. Seus olhos cheios de lágrimas imitam as nuvens e seus pensamentos puros brilham como o relâmpago. Em um momento, o mistério da responsabilidade humana com sua recompensa pelas boas ações e castigo pelas más, é desvendado.

Daí em diante, sua adoração não será glorificação fingida, e seu trabalho diário não será penoso. Elevando-se, viajará nas alas da Esperança e do Temor. Com o coração alegre e com profundo desejo segue adiante quando, o Vale Abismal apresenta sua temível visão. Ao olhar profundamente a natureza de suas ações, percebeu que aquelas que eram boas, se realizavam pelo desejo de ganhar a aprovação de seus congêneres, ou eram simplesmente resultado de vanglória.

De um lado, viu a Hidra de muitas cabeças (A serpente aquática dos antigos gregos, que tinha muitas cabeças que ao serem cortadas, eram substituídas por outras novas) da hipocrisia, e de outro, a feiticeira Pandora do orgulho com sua caixa aberta (Na mitologia grega, uma bela mulher a quem Júpiter deu uma caixa que continha todos os males da humanidade; ao ser aberta, aqueles se espalharam pela Terra). Desesperado, não sabe o que fazer quando! O Anjo da Sinceridade emergiu da profundidade de seu coração e segurando-o pelo braço o levou através do Vale.

Expressando sua gratidão pelo favor Divino, seguia adiante quando os pensamentos dos diversos favores recebidos por seu indigno ser e sua capacidade de fazer justiça plena com ações de graças o oprimiu.

Este era o Vale dos Hinos onde, mortal como era, fez o possível para contar em glorificação ao Ser Imortal. A Mão Invisível da Misericórdia Divina abriu então a porta do Jardim do Amor, e o fez entrar em corpo e alma, já que ambos haviam feito sua parte direta e indiretamente. Aqui termina a viagem. O adorador vive agora entre seus iguais como viajante, porém seus coração vive n’Ele esperando o momento de cumprir a última ordem, “E tu, ó alma em paz, retorna ao teu Senhor, satisfeita (com Ele) e Ele satisfeito (contigo)! Entra no número dos Meus servos! E entra no Meu jardim!” (Al-Qur’an, al-Fadjr, LXXXIX, 27 a 30).

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